Línguas Mortas (II) 66672y

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Esta coluna completa um assunto começado na anterior, que sugiro você ler antes desta. 1u205o

Línguas Mortas (II)

Três regiões no Brasil se destacam por suas complexidades linguísticas. Um dos mais remotos povoamentos indígenas ocorreu em Rondônia, talvez a partir do século I.

Como resultado, concentrou-se lá uma enorme variedade étnica, com nada menos do que cinco troncos linguísticos, além de várias línguas desconhecidas. O total de idiomas chega a 55, incluindo os da vizinha Bolívia. Há mais línguas diferentes lá do que em toda a Europa.

O Tronco Tupi (Fonte – Aryon Rodrigues).

No alto Rio Negro (AM) existe uma região com o formato de uma cabeça de cachorro voltada para a esquerda. Começando no século V, lá confluíram cinco famílias linguísticas, incluindo as das vizinhas Colômbia e Venezuela: algo como 24 línguas estão em contato há seis séculos. As etnias são divididas entre povos do rio e da floresta.

O Tronco Jê (Fonte – Aryon Rodrigues).

Finalmente, no Parque Indígena do Xingu (MT), região de cerrado e floresta habitada desde o século IX, foram reunidas uma dúzia de etnias, com 10 línguas e dialetos. Desenvolveu-se  lá uma grande riqueza multicultural e multilíngue. O Parque tem grande importância histórica, pois foi a primeira Terra Indígena estabelecida no país, nos tempos do Marechal Rondon.

Quando uma língua morre, com ela se perde uma parte da tradição e diversidade humana sobre a terra, diz a professora Luciana Storto. Ela lembra que nossos índios nunca tiveram escrita – portanto, toda a sua cultura de transmissão oral simplesmente está sendo esquecida. Bem como a arte verbal, o estilo narrativo e as técnicas de expressão de cada língua.

Comumente, a perda é irrecuperável, pois poucas das línguas puderam ser registradas. E, com cada língua esquecida, some junto a história do povo que um dia a falou. Em talvez meio século todos os nossos idiomas nativos terão desaparecido.

É assim que três pesquisadores comentam sobre um casal que encontraram na divisa do Brasil com a Bolívia: Aquela casa desperta, para quem entra nela, uma sensação incômoda de estranheza, como se o casal idoso que vive nela viesse de outro planeta, de um mundo que eles nunca poderão ressuscitar. Referem-se à língua warázu que os anciões Kanatsi e Hiwa falam entre si e que ninguém mais entende.

Kanatsi e Hiwa, os últimos falantes da língua warázu. Moram no vale do Rio Guaporé.

Há meio século, eles habitavam uma aldeia do povo warazúkwe, que acabou abandonada. Outros dois companheiros, Mercedes e Carmelo, vivem hoje na Bolívia, mas não mais falam o warázu. Parece que a vergonha étnica que os warazúkwe experimentaram foi tão intensa que Mercedes não gosta de proferir palavra alguma no seu idioma e Carmelo afirma que esqueceu tudo, contam os pesquisadores.

Rondônia, onde ficava a sua tribo, foi uma dos lugares do país onde as terras indígenas foram mais brutalmente invadidas e saqueadas, e seus moradores, expulsos e dizimados, a ponto de etnias inteiras terem perdido a população adulta, privando os jovens que sobreviveram do o à cultura com que nasceram.

Eu lá assisti, meros dois anos atrás do momento desta redação, a devastação da mata, e em propriedade federal, de forma tão horrenda que não creio irei jamais esquecê-la. Para mim, as árvores queimadas se comparam às populações mortas e a vida vegetal extinta, com a cultura indígena perdida.

Durante a colonização, o tupi era falado ao longo de grande parte da nossa costa. Como os portugueses aqui aportavam sem esposas, era comum juntarem-se às índias, com quem acabavam tendo filhos. De alguma forma, teriam de se comunicar. Eles adotaram no século XVI a língua indígena, na época chamada de brasílica.

A primeira gramática de 1595 da lingua tupi, pelo Padre José de Anchieta.

No século seguinte, já modificada pelo português, ela gerou duas línguas gerais. A primeira delas foi a paulista, levada pelos bandeirantes para o interior do país e falada como língua franca pela população do sul até o século XVIII. Foi dela que resultaram as 20 mil palavras indígenas do nosso vocabulário. Chegou a ser proibida e só foi completamente extinta no início do século XX.

A segunda foi a amazônica, que se difundiu nos séculos XVII e XVIII pelo norte do país. Foi depois conhecida como nheengatu, sendo falada e ensinada até hoje, em especial na bacia do Rio Negro. Eu encontrei alguns falantes dela, e cheguei a aprender algumas palavras, quando subi ao Pico da Neblina.

Ela é vista como uma língua de afirmação étnica dos povos que perderam seus idiomas nativos. Não é raro encontrar polilinguismo, por exemplo entre os aruak ou os tukano.

Não sei se vou conseguir transmitir suficientemente meu sentimento de perplexidade diante do descaso e mesmo desprezo dos brasileiros em relação à cultura indígena.

Nossos índios são vistos como criaturas primitivas, que não deixaram um legado físico de grandes cidades muradas; foram incapazes de criar um relato escrito de sua história e religião; sequer desenvolveram as ciências, trabalharam os metais ou criaram as moedas; se limitaram a uma arte rupestre de esboços rudimentares; que caçavam, se vestiam, se alimentavam e moravam de maneira sumária; que nunca formaram nações fortes de governos centralizados ou sociedades hierarquizadas.

Diademas e brincos, exemplos de arte plumária de diversas tribos (Fonte – Instituto Sócio Ambiental).

Mas os povos indígenas possuem uma cultura rica e complexa. Sua religião é animista, com poderosos mitos de criação e seres espirituais encarnados nos animais – o mundo visível é para eles um aspecto do universo mítico.

Sua música e dança são coloridas e variadas, voltadas para o uso social ou religioso, com ênfase nos ritmos, timbres e alturas. Sua arte é utilitária, revelada na cerâmica e cestaria, nos adornos e pinturas corporais, nos têxteis e nas vestes cerimoniais, nas urnas funerárias, instrumentos musicais e órios plumários.

Máscara indígena de madeira mulungu, usada em rituais (Fonte – Museu de Arte Indígena).

Acredito que o desprestígio dos nossos indígenas esteja ligado ao ambiente natural em que viveram, de uma densa e úmida floresta tropical. A maioria dos objetos usados nas suas manifestações, como folhas, penas, cipós, madeiras e peles, são perecíveis e não favoreceram construções elaboradas.

Porém, nos locais em que a presença da pedra (por oposição à mata) permitiu a durabilidade, pesquisadores têm encontrado vestígios de populações sedentárias em cidades de até 60 mil pessoas, com sociedades estruturadas. Os seus Deuses animistas não seriam assim tão piores que os nossos monoteístas.

Índio enauenê-nauê tocando instrumento de sopro e exibindo uma rica pintura corporal.

Os objetos indígenas eram vistos um século atrás como preciosidades, quando eram disputados mundialmente pelos museus etnográficos ainda não abastecidos deles. Entretanto, são agora grandemente ignorados.

É impressionante como essas culturas vivas não são consideradas valiosas – na África, na Austrália, no Ártico, na América. Talvez no futuro só sobrevivam através dos vidros nos mostruários dos museus.

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Sobre o autor 4g6f10

Nasci no Rio, vivo em São Paulo, mas meu lugar é em Minas. Fui casado algumas vezes e quase nunca fiquei solteiro. Meus três filhos vieram do primeiro casamento. Estudei engenharia e depois istração, e percebi que nenhuma delas seria o meu destino. Mas esta segunda carreira trouxe boa recompensa, então não a abandonei. Até que um dia, resultado do acaso e da curiosidade, encontrei na natureza a minha vocação. E, nela, de início principalmente as montanhas. Hoje, elas são acompanhadas por um grande interesse pelos ambientes naturais. Então, acho que me transformei naquela figura antiga e genérica do naturalista.

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