Meus livros costumam ter títulos que nomeiam rochas: granito, arenito. Rochas são importantes para mim, não gosto de viver distante delas. Tenho com as rochas uma relação de proximidade, até de afeto. Mesmo pelo quartzito e o diabásio sinto interesse e simpatia. Mas não com o calcário, título desta coluna. Isto ficará claro no fim. 53ju
O Calcário
O calcário é uma rocha sedimentar, à semelhança do arenito. Embora forjada nas profundezas como o granito, sua origem é completamente diferente.
O calcário não vem do fogo ou da erosão, vem curiosamente da vida. Resulta normalmente da compactação de organismos marinhos, que morreram nas águas calmas dos mares ancestrais e se depositaram no fundo daqueles leitos.
Os geólogos perceberam com perplexidade uma mudança dramática nos registros fósseis durante o período do Cambriano, 500 milhões de anos atrás.
Houve uma explosão de vida, com o surgimento num curto tempo de novas e variadas formas animais. Parece que um limiar de complexidade foi rompido por essas genéticas inéditas. E muitas delas contribuíram para a deposição do calcário.
Essas criaturas, como crinoides, amonites e foraminíferas, construíram seus esqueletos a partir do carbonato de cálcio mineralizado da água em que viveram, criando estruturas belas e exóticas.
Desta forma, o calcário pode ser visto como uma fase de um longo ciclo, no qual o mineral se transforma em animal e este se aglomera em rocha. Ao longo do tempo, esta rocha poderá suprir o carbonato de cálcio do qual novos organismos do futuro construirão suas formas, desta maneira recomeçando de novo o ciclo.

Os amonites surgiram há 400 milhões de anos e estão hoje extintos.

As foraminíferas apareceram a partir de 600 milhões de anos e ainda são encontradas.
O fato primordial acerca do calcário é que ele é solúvel na água. A chuva absorve dióxido de carbono do ar, tornando-se levemente ácida ou carbonada. Porém isto é forte o suficiente para deformar e esculpir o calcário ao longo do tempo. O desgaste se aprofunda nas perfurações da rocha, formando fendas, câmaras e gargantas.
Os cenários do calcário são plenos de lugares escondidos. Eles têm os surpreendentes volumes do interior dos pulmões, escreve Robert Macfarlane, um escritor montanhista com uma série de obras sobre o homem e a paisagem.
No relevo terrestre, 17% da superfície é ocupada por rochas carbonáticas, principalmente na Europa, sudeste da Ásia e leste da América do Norte. Apenas metade desta incidência é encontrada na África e na América do Sul.
A razão é que estas são regiões mais antigas, resultantes da ruptura do continente ancestral Gondwana – onde o calcário ficou subjacente a depósitos posteriores pouco permeáveis – ou seja, ele restou escondido nas profundezas.

A ocorrência de calcário no Brasil se concentra no interior da mancha escura, grandemente entre Minas e Bahia.
Os geólogos localizam o calcário em apenas 6% de nosso território, e em duas formações muito antigas, pois datam de 1 a ½ bilhão de anos atrás.
A Formação Bambuí pode ser encontrada próximo ao encontro dos Estados de Minas, Goiás, Bahia e Tocantins. A Formação Una está associada ao Rio São Francisco, na região da Chapada Diamantina.
A Gruta da Lapinha (MG), onde foram achados por Peter Lund importantes fósseis da megafauna, pertence à Formação Bambuí. É uma cavidade belíssima, porém pequena, com cerca de ½ km. Existe um pequeno parque estadual à volta da Gruta, anexa ao qual foi estabelecida uma Área de Proteção Ambiental do carste local.
Na Formação Una fica a Toca da Boa Vista (BA), maior caverna do Brasil com mais de 100 km de labirintos. E perto dela existe a segunda maior formação brasileira, a Toca da Barriguda, com 35 km.
Ainda não completamente exploradas, uma conexão entre elas resultaria num super sistema com potencial acima de 200 km. A maior caverna mundial é a Mamute, no Kentucky (EUA), com mais de 600 km.
As Maiores Cavernas do Brasil
Ordem | Nome | Estado | Projeção
(km) |
Ordem | Nome | Estado | Projeção
(km) |
01 | Toca da Boa Vista | BA | 114.0 | 02 | Toca da Barriguda | BA | 35.0 |
03 | Lapa São Mateus | GO | 22.7 | 04 | Lapa Doce II | BA | 16.5 |
05 | Gruta do Padre | BA | 16.4 | 06 | Lapa São Vicente I | GO | 16.4 |
07 | Boqueirão | BA | 15.2 | 08 | Toca dos Ossos | BA | 14.2 |
09 | Lapa do Angélica | GO | 14.1 | 10 | Gruna da Água Clara | BA | 13.9 |
11 | Gruta da Torrinha | BA | 13.0 | 12 | Lapa Sem Fim | MG | 11.9 |
13 | Gruta da Tarimba | GO | 10.6 | 14 | Lapa dos Peixes | BA | 9.3 |
15 | Lapa Doce I | BA | 9.3 | 16 | Lapa do Convento | BA | 9.2 |
17 | Olhos D’Água | MG | 8.9 | 18 | Lapa dos Brejões I | BA | 8.4 |
19 | Gruna do Enfurnado | BA | 8.4 | 20 | Caverna Santana | SP | 8.4 |
Notas: (1) A Bahia concentra dois terços das maiores cavernas brasileiras. (2) Segundo outras fontes, a Caverna do Diabo é a maior de São Paulo. (3) Fonte: Grupo Bambuí de Pesquisas Espeleológicas.
Mas existem muitos outros locais de interesse no interior dessa enorme mancha calcária: o Morro da Pedreira na Serra do Cipó, as esplêndidas cavernas do vale do Peruaçu, todo o bioma da Mata Seca no norte mineiro, as grutas molhadas da Chapada Diamantina e as cavidades de São Domingos em Goiás. Já as notáveis cavernas paulistas ficam fora desta província, bem como o calcário nordestino.
O calcário é responsável pela formação dos relevos cársicos. Esse estranho nome (também escrito carste) vem do esloveno kras, que significa apenas um campo de pedras.
Na divisa da Eslovênia com a Itália e a Croácia existem notáveis formações calcárias – seu esplêndido sistema cársico foi o primeiro a ser estudado no mundo. Mas as mais visitadas talvez sejam as lindas piscinas naturais chamadas de cenotes no México, com a mais cristalina das águas.
A existência de regiões cársicas depende de alguns fatores. É fundamental a presença de rochas solúveis – mas não excessivamente, caso contrário serão dissolvidas na água, como acontece com a gipsita. E, se forem pouco ou nada solúveis, como o granito ou o quartzo, não serão afetadas.

O agitado relevo cársico na Sierra del Torcal na Andalusia, Espanha.
A segunda condição é a permeabilidade da rocha, caso contrário a água não poderá penetrar nela. Melhor ainda, se a rocha for fraturável, então a água poderá agir sobre superfícies maiores com mais eficiência. Além disto, nos relevos acidentados, por oposição aos planos, a água torna-se mais veloz e agressiva. Por fim, é importante que a região receba chuva com volume e frequência.
Os relevos cársicos são mais ricos no subterrâneo do que na superfície. E de uma forma esquisita. A água jorra da rocha e nela desaparece, pois o meio rochoso é permeável. Os lagos se formam sem que a água flua deles e para eles – pois são enchidos e esvaziados pelo lençol d´água embaixo.
Há labirintos onde a água circula por milênios, cavernas repletas de surpreendentes decorações de pilares ou cortinas. A terra pode colapsar e buracos ou túneis aparecerem, grandes bocas ou dolinas se abrirem, ou quem sabe janelas e abismos. O carse é um mundo móvel e perigoso, cheio de trevas e de surpresas.
Essa rocha singular, tornada móvel pela convivência com a água, tem para mim três manifestações visualmente impactantes: as dolinas, os lapiás e as cavernas. As duas primeiras pertencem à sua superfície e a terceira, ao seu interior.
As dolinas (mais um nome esloveno) são depressões circulares causadas pela dissolução do calcário abaixo. Há dolinas impressionantes, grandes desabamentos que abrigam toda uma vida variada no seu interior. A maior delas no Brasil é o estupendo Buraco das Araras no MS. Mas, para mim, é impossível esquecer a dolina desorientadora da Caverna Temimina em SP.
Se enchidas por água, as dolinas formam belos lagos, com águas cristalinas e coloridas. Quando profundas, são ótimos lugares para mergulho, devido à limpidez da água e ao seu o superficial.

Buraco das Araras em Jardim (MS) e APA do Lajedão em Matias Cardoso (MG).
Nos lapiás (agora um nome francês), a água dissolve a interface entre as rochas, criando uma série de fendas, que se alargam com o tempo. A impressão visual é surpreendente, devido ao incrível fraturamento das rochas. Em certos casos, elas ficam completamente separadas entre si, permitindo o o ao seu interior.
O lapiá mais extraordinário que conheço é o Lajedão no norte de MG, uma formação extensa numa região árida de caatinga. Aliás, muito de nosso calcário acontece nessas paisagens secas, e não em locais úmidos e acidentados.
Mas o carse manifesta-se sobretudo nas cavernas. São formadas pela água ácida que dissolve a rocha ao longo de suas rachaduras. Após milhares de anos, essas cavidades vão se alargando e aprofundando sob a forma de galerias.
Quando o nível da água se rebaixa devido ao aumento de permeabilidade das camadas inferiores, essas galerias se esvaziam. Em muitos casos, tetos que eram sustentados pela pressão da água desmoronam, gerando grandes salões de abatimento.
A queda dos tetos das cavernas pode levar ao colapso do solo acima dos salões, sob a forma de dolinas, que podem se tornar claraboias ou os para as cavernas. Outras entradas aparecem em sumidouros ou ressurgências; uma vez formadas, podem se manter mesmo depois que a água se esvai e a caverna se torna seca.
A ação da água não termina após o esvaziamento das galerias e salões. A carsificação neste caso a a criar delicadas decorações que parecem milagrosas. Quando você as ilumina no escuro, descobre um novo mundo maravilhoso por dentro deste outro em que vive.

O mundo misterioso das cavernas – PE da Terra Ronca, GO (Fonte – Márcio Bittencourt).
Os minerais da rocha se precipitam e cristalizam em impressionantes colunas como estalagtites e estalagmites, em mágicas paredes e cortinas, em bandas paralelas no soalho chamadas travertinos, em misteriosas e delicadas hélices, agulhas e cálices ou em flores e pérolas que mais parecem criadas por sonhos.
É assim que o calcário me parece bizarro: uma rocha sem forma que adquire formatos estupendos, um mundo mineral que já foi vivo no ado, uma existência subterrânea inesperada se vista da sua superfície e que a supera em abundância e significado.
Para que uma ave voe são necessários ossos fortes e ocos e penas leves e flexíveis, junto com a vontade de voar. Acho que a vontade do calcário é a água, essa substância tão oposta à rocha e que, entretanto, lhe dá a vida.
Então, há algo de anormal no calcário, com que jamais me acostumei. Ele é um fantasma do ado que assume no presente formas orgânicas, apesar da sua rigidez de pedra. Por isso o chamei, e talvez a contragosto, de rocha viva.